Filhos - esquecidos - dessa terra de Deus.

terça-feira, 15 de julho de 2008


Nun pedaço de chão, pedacinho só ta bom? Que não tinha nada, nem vontade de ser terra, existia uma família. Familia não, ajuntamento. Esse ajuntamento, como se diz em minha cidade, era composto de um homem de 35 anos – com cabeça de 120, corpo de 200 e cara de nunca ter saído da cova – uma mulher que não vale a pena mencionar de tão subjulgada e feia que era (vale perguntar, feia para quem? Mas deixemos de lado que isso literatura nunca explicou, não vim aqui para mudar regra de nada, pois...) – 11 crianças, que têm tantos nomes e tantos mais apelidos que para minha mente velha e cansada recordar é uma Odisséia.
Pois bem, cheguei nesse pedacinho de chão seco, batido e sem vontade de ser terra para fazer uma pesquisa. O engraçado é notar, depois que voltei, que ver gente pobre não é ver outra espécie (mesmo que agente finja que acredita em palavras como igualdade, kkkk, é até piada né?).
Bem, aquela família que ali morava, que havia morado outra família com tantas outras crianças de se perder de vista, chegou naquela terra com as duas mãos atrás. Agua é igual que ouro nessa terra de coitados, semente só no dia 30 de fevereiro, justiça então, o que é isso? Lá tinha, como qualquer local humanamente habitável, um ser que tinha unhas claras e palavras postiças (melhor seria que tivesse unhas postiças e palavras claras, mas isso é só uma inversão de adjetivos não é mesmo?). Ficou combinado o seguinte: O coitado do homem trabalharia para o das Postiça por 8 horas diárias, salário mínimo, FGTS, enfim, tudo isso que a lei (lei ali?) dizia. Como não sabia o que tinha na lei, nem muito menos o que era uma lei, o Coitado aceitou, já que o um ser maior (a fome) gritava o “sim” por ele.
Faça as contas comigo leitor, por favor, não leia passivamente. Se numa cidade grande, com greves, passeatas, sindicatos e toda a parafernalha trabalhista, um garçom é lesado – digamos que ele trabalhe em um restaurante por 8h, se numa hora ele serve 10 mesas, e colocando uma taxa de 10% de cobrança de serviço sobre a conta, ele ganharia 5 reais por mesa, logo, 50 reais em uma hora de serviço, multiplicado por 8h do dia, 400 reais, multiplicado por 30 dias de trabalho, 12000 reais, que, de acordo com meus cálculos foi o justo cobrado aos clientes com os 10% PARA PAGAMENTO DO PESSOAL, quem, em terra de deus, ganha isso tudo como garçom?! E o patrão ainda pega a maior parte daquilo que pagamos para o garçom... – imagine o que aconteceria com o nosso Coitado, analfabeto e empregado da Postiça? Nem imagine, é antiliterario demais para se imaginar uma coisas dessas.
Bem, cheguei lá com um silencio irritante. Irritante a ponto de gargalhar e não escutar a minha própria boca. Era silencio de som. Mas o barulho era ensurdecedor. O barulho da mente daquela mulher sem atributos me esganava, me jogava contra a parede, me fazia berrar por dentro. Era agoniante vê-la chorar esganiçada, calada, apertada, moída, empurrada nun canto para que ninguém a visse chorar, mas, acontecia exatamente o contrário e eu a vida toda e completamente ali, suas esperanças escorrendo pelo chão, suas lágrimas eram ácido para aquela terra, era fogo, era brasa, nem chegava ao chão. Aqueles 11 meninos que tinha, só havia 3, muito fraquinhos e de olhos esbugalhados, que não deveriam tomar banho a dias e a remela se misturava ao choro, a fome e ao catarro. Não se sabia o que era boca e o que era nariz tamanha era a crosta que se formava ali. Os pés há tempos não tocavam o chão, quão grande era a espessa camada de carne morta (alias tudo ali é morto) que seus pés tinham desde antes de nascer. Perguntei, quando minha incredulidade, meus preconceitos, minha ânsia de profissionalismo e toda minha civilidade tornaram-se inúteis e ridículas.
- A senhora está bem? – Não me respondeu, para falar a verdade não expressou qualquer alteração de movimento. – Senhora? – repeti, talvez fosse surda. Uma das crianças me olhou e me fitou.
- Tá falando com a senhora mainha.
A mulher esbugalhou os olhos, andou em minha direção com o resto de energia que ainda não havia escorrido. Temi, enojado, que aquelas mãos podres e cheias de sujeiras iriam me tocar. Ela sentiu minha repulsa e parou.
- Falou com eu? Com eu?
- Sim, senhora, está bem? Precisa de ajuda? Posso ajuda-la? – aquela mulher não falava errado, ela falava sua língua, seu dialeto. Ali, ser alguém, é preciso ter água. ( e não conta as lágrimas...)
- ô meu deus do céu, o senhô me mandou um anjo que me olha nos olhos e me trata como gente! Brigada meu deusinho. Olhe, lhe rezo 200 ave-maria e 500 pai nosso por uma graça dessas!
- Não, desculpe, eu sou jornalista. Vim aqui para fazer uma pesquisa sobre os projetos sociais que são desenvolvidos aqui.
- que? – ia ser difícil.
- Para onde que a senhora ta indo? Se sente bem?
- Eu sei de onde eu vim, mas para onde eu vou é o senhô quem me diz. – aquela mulher tava agonizada. Definhava cada vez mais, e mais. A vi cair em minha frente, hesitar. Acelerei para ajuda-la, fazer algo por ela. Mas aquela mulher estava indo, para o local em que ela tinha de ir, perdendo-se nun ponto vago que eu, saudável e gordo, jamais entenderei.
- Não entre nessa cidade, que é cidade do cão. Se deus criou o homi, o diabo há de ter criado a alma. Não tem criatura nesse mundo mais postiça que os filhos de deus.
E foi-se. Saber o que havia acontecido com aquela mulher era simples. Sua falta de gordura e músculos mostrava que havia morrido da pior forma. Seu organismo a comeu, lentamente. Não antes de lhe comer o sonho, a esperança, a virtude e a honra. Morreu de ficar só consigo mesma, de deparar com a inutilidade de sonhar, morreu de esperar, morreu de ficar cheia de silêncio, morreu de morte forçada.
Ela não ia ser nem mais um número no noticiário das 6. Ela era adubo para aquela terra que não tinha vontade de ser terra.
Evolução da espécie não é mesmo?

Flávia Braga

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