Impulso Elétrico

sábado, 1 de novembro de 2008


Era assim: simples. Nada de gravata ou smoking preto combinando com sapatos brilhantes. Era modesto, com um cabelo sem pentear, grudado. Com chinelos sem marca. Com anéis de côco. Sorriso nos lábios, nas bochechas, no olhar. Os ombros riam também. Sem emitir nenhum som sequer. Tinha nos ouvidos a percepção de antenas de formigas. Pensamentos de fogo. Intenso, brilhante, alarmante, chamava a atenção para si.
E por isso era tão encantador.
Não tinha em si a hipocrisia simplória dos sábios. Não tinha pinta de ricaço. Não tinha nada de verdade, era nada, só aquilo ali, aquele momento o pertencia. Sem código de barras.
Entrei, com o peso de uma noitada irresponsável. Os olhos marejados pelo sono que ainda persistia em se agarrar a mim. Meu corpo respondia a qualquer estímulo à latência. Mover era custoso, pensar era custoso. O ônibus não tava lotado como todos os dias, o sol ainda não tinha acordado. As pessoas fechavam-se em seus zumbis, filosofando sobre a vida que em seus livros de ficção nunca irá existir. Ele tava lá, não como um zumbi – e isso de primeira me intrigou – mas cheio de música e melodia que entrava sem pedir licença em cada poro da minha pele. Aquela canção suave, de violino, espalhava-se como o ar pelos cantos. Era um convite ao nosso submundo, ao nosso dever de quebrar padrões.
O músico era negro. Tinha barba, roupa rasgada. Cabelos em rastafári, pés calejados. Violino impecável e uma caixa preta fechada, dizendo ali que, mesmo sem palavras, não tava pedindo esmola de ninguém. Ele queria tocar. Não para o seu ego, nem para o seu egoísmo, tocava para mostrar que era possível arte sem os padrões. Em qualquer outra hora daquele mesmo dia, em qualquer outro local daquela mesma cidade, ele era um ladrão puto safado em potencial. Mas não ali. Ali ele mostrava que somos ridículos.
Deixei que me dominasse com uma sutileza e rapidez que não me dei conta. No meio do caminho, atordoada entre a vergonha e a vontade súbita de prestigia-lo, o máximo que fiz foi ser hipnotizada pela música dele. Não precisava falar uma única palavra, seus gestos, sua vontade, seu amor que transbordava em todos nós, era como um discurso de libertação dizendo: vejam! Vejam! Vejam! Ele PODE sonhar!
Nós, meros humanos mortais, jamais entenderemos os artistas. Não tem como. Ver os pigmentos sendo refletidos sobre uma rosa, ao invés de vermelho. Amar sem piedade da carne ao invés de pudor.
Meu Deus. Meu Deus!
Ainda há com o que se espantar! Não é um chip, não é um robô, não é uma arma.
AFASTEM!
É um ser pensante...


Flávia Braga

2 comentários:

Anônimo disse...

e de novo vc me surpreende mostrando um lado que geralmente não ousamos enxergar.
beijos!

Cássio disse...

1 - Nós não só somos rídicolos, como preconceituosos!
2 - Quando eu cresecer eu quero ser um artista :D
3 - E com relação à músicas; o que seria de nós sem elas?
4 - E sempre há um Coringa em um baralho!
Beijos!